Fabíola Sucasas*

21 de junho de 2019 | 05h00

O título deste texto pode parecer impensável, na medida em que não se deveria cogitar pela ânsia de uma discussão sobre o direito ao uso do banheiro por uma pessoa. Afinal, senão para atender as necessidades fisiológicas e de higiene, por qual razão se questiona quem deve ou não fazê-lo?

A única resposta que se tem a esta indagação está justamente na afronta a um dos primados fundamentais e objetivos da nossa Constituição, quais sejam, o respeito à dignidade da pessoa humana e à promoção do bem de todos sem preconceitos de qualquer natureza.

A pessoa transgênero é pessoa humana, que evidente! O respeito à sua dignidade é tão basilar quanto o respeito à dignidade ínsito de qualquer outra pessoa. Porém, muitos se esquecem destes primados ao contestar a identidade de gênero como fato e como direito fundamental.

Afinal, quem é a pessoa trans? A pessoa transgênero é quem se identifica pelo gênero diverso àquele correspondente ao sexo biológico. A mulher transgênero identifica-se pelo gênero feminino ainda que, ao nascer, o sexo biológico que lhe é ou foi correspondente seja o masculino; o homem transgênero identifica-se pelo gênero masculino, ainda que o sexo biológico tenha sido ou seja o feminino.

A transexualidade não é mais entendida como doença mental pela Organização Mundial de Saúde, mas apenas uma “incongruência de gênero” entre as condições relacionadas à saúde sexual, compreendida por uma “incongruência acentuada e persistente entre o gênero experimentado pelo indivíduo àquele atribuído em seu nascimento” (1).

O Conselho Federal de Psicologia, antes da alteração feita pela OMS já havia publicado Resolução (veja documento abaixo) para orientação a profissionais de psicologia de forma a não exercerem qualquer ação que favorecesse – e favoreça – a patologização das pessoas transexuais e travestis.

Documento

Reconhece-se a atribuição identitária pelas pessoas trans, assim também reconhecidas socialmente, com todos os direitos que lhes são decorrentes. Ocorre porém que o usufruir do direito ao uso do banheiro – e muitos outros que tem dependido da Suprema Corte a sua reafirmação em nome de uma vida digna – lhes tem sido negado em locais públicos ou de acesso ao público, levando até a iniciativas de leis proibitivas.

Em um shopping de Florianópolis/SC, uma funcionária expulsou uma mulher trans do banheiro feminino sob o argumento de que sua presença naquele recinto poderia causar constrangimento às demais usuárias. Este o fato originário do Tema 778 enunciado nos autos do Recurso Extraordinário n. 845.779, objeto de reconhecida Repercussão Geral, pendente de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal e que atingirá pelo menos mais de setecentos processos semelhantes (2).

De uma relação de consumo afeta ao uso do banheiro, o defeito no serviço, à sua negativa pela evidente discriminação – que chegou a ser considerada “mero dissabor” pelo Tribunal a quo – e ao direito à indenização de danos morais, a configuração da Repercussão Geral se pautou por envolver discussão sobre o alcance de direitos fundamentais de minorias, uma vez que constitui “questão constitucional saber se uma pessoa pode ou não ser tratada socialmente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente, pois a identidade sexual está diretamente ligada à dignidade da pessoa humana e a direitos da personalidade”, tema que foge de uma mera questão patrimonial de responsabilidade civil, como enunciou o Min. Barroso em sua manifestação.

Em uma cidade do interior do Estado de São Paulo, lei municipal encontra-se em vigor desde 2015, vedando a utilização de banheiros, vestiários e demais espaços segregados, de acordo com a identidade de gênero, em instituições que atendam ao ensino fundamental, público ou privado, instaladas no âmbito do Município. Lei esta objeto de ação direta de inconstitucionalidade, com vistas à cassação de sua vigência, proposta pelo MPSP.

Em 2018, o ministro Edson Fachin do Supremo Tribunal Federal, quanto a retificação do registro civil das pessoas transgêneras, alçou a identidade de gênero como de reconhecimento fundamental ao pleno gozo das pessoas trans, ressaltando que a solução da questão jurídica então postada passasse pela “filtragem da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, da CRFB) e da cláusula material de abertura prevista no § 2.º do art. 5.º”, de onde também advém os direitos de personalidade.

Nesta mesma direção o fundamento de liminar concedida pelo Ministro Barroso quando da análise de debate a respeito da abordagem de gênero nas escolas, para quem “privar um indivíduo de viver a sua identidade de gênero ou de estabelecer relações afetivas e sexuais conforme seu desejo significaria privá-lo de uma dimensão fundamental da sua existência; implicaria recusar-lhe um sentido essencial da autonomia, negar-lhe igual respeito e consideração com base em um critério injustificado”.

O mesmo raciocínio deve ser empenhado na questão dos banheiros, afinal o exercício da cidadania e o respeito à dignidade da pessoa humana não pode se dar pela metade!

Não à toa que a Procuradoria-Geral da República, em seu parecer nos autos do Recurso Extraordinário prestes a ser julgado, bem ressaltou sobre o sentido e a amplitude da afirmação da identidade de gênero, encerrando na dignidade da pessoa trans o direito de expressar tudo o quanto necessário a refletir o que advém da sua realidade vivenciada, sob a ótima psicossocial.

Não à toa também, que o Estado de São Paulo, já desde 2001 – e de modo inédito -, pune administrativamente, toda manifestação atentatória ou discriminatória praticada contra cidadão homossexual, bissexual ou transgênero, dentre elas a proibição de ingresso ou permanência em qualquer ambiente ou estabelecimento público ou privado, aberto ao público.

O cenário de reafirmação dos direitos das pessoas trans, porém, tem costumeiramente dependido da palavra final do Judiciário, infelizmente. Antes das decisões imperiosas de garantia de princípios de ordem internacional – e constitucional -, as mais variadas violações são cometidas aos atropelos das mínimas primazias de convivência e respeito; aos atropelos muitos dos quais aparentemente legitimados sob também o atropelo do primado do Estado Laico. Neste cenário, que a Justiça não tarda, pois até lá é possível sustentar incorrer em outra violação à dignidade da pessoa humana: o prolongar do sofrimento de alguém que deseja simplesmente gozar e usufruir da sua própria existência.

(1) Acesse para o catálogo da OMS:
https://icd.who.int/browse11/l-m/en#/http%3a%2f%2fid.who.int%2ficd%2fentity%2f577470983

(2) Maria Eugenia Bunchaft, in “Transexualidade e o “direito dos banheiros” no STF: uma reflexão à luz de Post, Siegel e Fraser”. Revista Brasileira de Políticas Públicas, volume 6, n. 3, dez. 2016

*Fabíola Sucasas, promotora de Justiça, diretora do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD) e assessora do Núcleo de Inclusão Social do CAO Cível e Tutela Coletiva do MP-SP

Leia no Blog do Fausto Macedo, do Estadão, aqui