Combatividade é a palavra que marca a trajetória de Airton Florentino de Barros, promotor por 32 anos e membro fundador do Ministério Público Democrático.

Nesta entrevista ao site do MPD, Airton conta que no começo da profissão se encontra uma ansiedade de fazer justiça que se esvazia ao longo da rotina. Mas que em um momento seguinte, com a experiência, o promotor consegue começar a trabalhar em prol do que acredita ser a defesa da sociedade.

A atuação de Airton nos temas que acredita serem fundamentais para a sociedade continua após sua aposentadoria. Agora como voz do MPD na sociedade por meio de artigos e entrevistas.

Airton defende com vigor o direito dos povos indígenas, tema do qual é profundo conhecedor, e o que chama de “nociva concentração bancária”.

Para ele, nessa época de polarização política, o denominador comum do membro do MPD deve ser pontos de convergência ideológica como bandeiras a serem defendidas: fortalecimento do SUS, reestruturação da educação pública no ensino fundamental com a devida prioridade e cumprimento de normas de proteção do cidadão na abordagem policial são alguns exemplos.

Leia abaixo a entrevista:

MPD — Por quanto tempo trabalhou no Ministério Público, quais objetivos o impulsionaram?

Airton Florentino de Barros — Foram 32 anos de MP. Aposentei-me há dez anos. No início, é aquela ansiedade de realizar o sonho de fazer justiça. Depois, a impressão de que o volume de trabalho vai desmontando o castelo de areia daquele sonho. Mais tarde, com a experiência, desaparece a ansiedade e surge nova dinâmica de trabalho fiel às convicções ideológicas. E as minhas convicções sempre me impulsionaram a aproximar a linguagem jurídica da popular e, também, na medida das minhas limitações, concretizar direitos sociais. O MP sempre foi um grande instrumento para isso.

MPD — A carreira no Ministério Público correspondeu às expectativas? Recomendaria aos estudantes de Direito?

Airton Florentino de Barros — As minhas expectativas enquanto estudante eram modestas. Não imaginava a força do MP, que eu já então respeitava muito e, depois, ganhou o papel de uma séria escola de aprimoramento jurídico, político e moral. Tenho muito orgulho de ter integrado a Instituição por tanto tempo. Tenho muito orgulho dos colegas contemporâneos, de extrema qualificação e admirável dedicação.

Tenho muito respeito pelo tempo em que os grandes colegas doutrinadores do Direito se revelavam garantistas, respeitadores da legalidade amplo sentido e, em especial, das normas de proteção do direito de defesa e dos direitos humanos.

Hoje, entretanto, a linha de pensamento institucional mais propagada, infelizmente, não me agrada, sobretudo pela demonstrada subserviência aos governos da hora e pelo evidente interesse nos temas midiáticos da moda, deixando o interesse público e social em segundo ou último plano.

MPD — Quais são os maiores desafios da profissão?

Airton Florentino de Barros — É a permanente busca do respeito ao Estado republicano e democrático de direito, por meio da:

– autonomia institucional;

– independência funcional de seus membros;

– aproximação dos agentes institucionais da vida da coletividade, definindo atribuições temático-territoriais para a obtenção de melhoria nos indicadores sociais de real interesse público;

– remoção do agente institucional do território em que sua atuação demonstre inércia ou maus resultados nos indicadores sociais de interesse efetivamente público.

MPD — A instituição do MP já tem a autonomia que necessita ou isso ainda precisa ser conquistada?

Airton Florentino de Barros — Trata-se uma luta permanente e interminável. Mas a autonomia institucional a ser buscada não deve ser só aquela formal, já conquistada em grande monta, mas, especialmente, a decorrente da atuação concreta.

MPD — Falando, agora, do MPD, conte-nos como foi sua filiação, o que o levou a participar da associação?

Airton Florentino de Barros — Sou fundador do MPD. Tenho a honra de ter integrado o pequeno grupo de qualificadíssimos colegas que fincaram a bandeira e descerraram a placa de fundação.

Como Promotor de Justiça de Falências e Liquidações Extrajudiciais da Instituições Financeiras, no Forum João Mendes, já era então rotulado por integrantes da administração do MP como “oposição radical” simplesmente por lançar críticas ao comando institucional e discordar da então crescente tentativa de hierarquização do MP, bem como da concentração de temas de interesse do governo na atribuição dos Procuradores Gerais.

MPD — Qual a importância da criação e existência do MPD, e como a entidade contribui para a redemocratização do país?

Airton Florentino de Barros — Tratou-se de um movimento que pretendia democratizar internamente a instituição do MP sem por isso sofrer represálias. E dessa forma influenciar todas as instituições públicas e organizações não governamentais.

Considerando que, antes do MPD, não era possível a um Promotor de Justiça, sem reprimendas do organismo disciplinar, dar entrevistas a um jornal e, logo depois, isso tornou-se tão natural que se refletiu para os juízes de todas as instâncias, que passaram igualmente a dar satisfações diretas à opinião pública, sua importância é evidente.

MPD – Quando se deu sua presidência na entidade? E como era a relação com o MP naquele período?

Airton Florentino de Barros — Já há três lustros. Na época o poder de investigação do MP era matéria prestes a ser examinada pelo STF. Tivemos muito trabalho com participação em todos os debates em que a questão era suscitada, mas conquistamos e tivemos o efetivo apoio, à época, de mais de uma centena de instituições púbicas e privadas e organizações sociais ligadas à defesa dos direitos humanos.  Mais de 50 delas, parceiras do MPD, encaminharam memoriais à Suprema Corte defendendo a manutenção do poder de investigação do MP.

MPD – Quais eventos destacaria da história do MPD, dos quais tenha participado?

Airton Florentino de Barros — Apenas por exemplo, o MPD foi atuante, e tive a honra de participar, na luta pela reforma da legislação eleitoral destinada a coibir o abuso do poder econômico e a compra de votos, bem como para assegurar a maior participação feminina nos pleitos eleitorais.

MPD — Como o MPD pode contribuir nesse momento da maior crise sanitária do século?

Airton Florentino de Barros — Primeiro, apoiando por meio de manifestações públicas o trabalho institucional da medicina no combate à pandemia.

Segundo, estimulando a atuação do MP nacional na fiscalização dos recursos destinados à saúde pública para esse fim e, bem assim, daqueles dirigidos ao auxílio emergencial das comunidades vulneráveis.

Terceiro, observando no âmbito interno os protocolos técnicos básicos de distanciamento e proteção individual.

Quarto, divulgando campanhas destinadas a garantir a eficiência do afastamento social.

Quinto, homenageando profissionais da saúde, voluntários e outras personalidades que já se destacaram ou vierem a se destacar no combate à pandemia.

MPD —Como organizar um movimento de classe com pessoas que têm ideologias políticas diferentes em um momento de polarização? Qual o denominador comum que o associado deve ter?

Airton Florentino de Barros — No meu modo de ver, as discussões ligadas às chamadas lutas identitárias, por serem em princípio desagregadoras, só deveriam ser levadas a efeito excepcionalmente. Nessa época de polarização política, deveríamos procurar pontos de convergência ideológica como bandeiras a serem defendidas.

Por exemplo, ninguém no MP parece discordar de que precisamos defender:

– o refinanciamento do sistema de produção industrial e tecnológica nacional, com um programa de desenvolvimento sustentável sob os aspectos econômico, político e sócio-ambiental;

– o estabelecimento de uma política de renda familiar e individual, com pleno emprego;

– a reestruturação da educação pública no ensino fundamental com a devida prioridade;

– o fortalecimento do SUS e aprimoramento dos planos privados de saúde;

– o cumprimento de normas de proteção do cidadão na abordagem policial; …

MPD — Qual deve ser o papel do MPD no presente e no futuro?

Airton Florentino de Barros — Continuar, no presente, lutando pela democratização interna do MP e pela defesa do Estado Democrático de Direito. Redefinir seu objeto estatutário, de outro lado, para torná-lo mais amplo e com maior possibilidade de concretizar-se no futuro próximo.

MPD — O senhor é especialista na legislação que trata da questão indígena. O que falta nesta lei? Ou é o caso de falhas na fiscalização e aplicação da lei?

Airton Florentino de Barros — O Estatuto do Índio (Lei 6.001/73) já tem 50 anos e previu, no seu artigo 65, o prazo de cinco (5) anos para que se fizesse a demarcação de todas as terras indígenas.

Esse prazo não foi cumprido. E, por isso, foi novamente imposto o mesmo prazo de cinco (5) anos, agora sob comando constitucional (CF, 1988, ADCT, art.67).

No entanto, a CF já tem mais de 30 anos e esse prazo foi descumprido mais uma vez.

Essa deveria ser uma luta também do MPD, até porque, com a demarcação de terras indígenas, grande parte das florestas nacionais ficará naturalmente protegida (os índios são os únicos verdadeiros protetores das florestas), além de tornar menos penosa a fiscalização do desmatamento e de explorações ilegais das áreas excluídas da demarcação.

Tudo no interesse das atuais e futuras gerações nacionais e do planeta.

MPD — O senhor também é um notório crítico do sistema bancário brasileiro. Falta uma legislação mais dura para este setor?

Airton Florentino de Barros — Entendo que a legislação nacional já conta com instrumentos para evitar a nociva concentração bancária. O grande problema está na inoperância, para dizer o menos, do CADE e do Banco Central.

A concentração de poucas grandes empreiteiras, como é público e notório pela recente experiência nacional, trouxe uma promiscuidade entre empresários, candidatos e agentes públicos do alto escalão da república, que forjavam resultados eleitorais conforme a sua conveniência, sob um festival de propinas e troca de favores.

Com os bancos é exatamente o que ocorre. Só a ingenuidade levaria o brasileiro, a esta altura, a acreditar que nenhum dos cinco grandes bancos nacionais, detentores de 85% do sistema de crédito no país, não se tenha envolvido seriamente nos crimes que a Lava-Jato, com seus conhecidos abusos, efetivamente apurou e até seletivamente ocultou.

Ademais, para que o financiamento do sistema de produção nacional volte aos níveis dos tempos de elevado PIB anual, indispensável é que novos bancos sejam autorizados a funcionar no país, restabelecendo-se a livre concorrência no mercado financeiro, no interesse público nacional.