ENTREVISTA DO MÊS – Dr. Luiz Antônio Guimarães Marrey, membro fundador e ex-presidente do MPD, foi procurador-geral de Justiça por três mandatos e chefiou missão internacional.

Com vasta experiência profissional, angariada ao longo da carreira, o procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo Dr. Luiz Antônio Guimarães Marrey tem certeza da opção profissional que fez e incentiva os jovens a fazerem o mesmo caminho. “Estou convencido que fiz a escolha certa para as minhas aspirações como cidadão e profissional do Direito. Recomendo a carreira aos estudantes que não tenham espírito burocrático, que tenham compromisso com o Estado democrático e que mantenham o entusiasmo nos olhos e na alma”, conta Marrey.

Como membro fundador e ex-presidente do Ministério Público Democrático (MPD), associação que completa 30 anos de história em 2021, Marrey fala da importância da entidade na defesa da democracia e das garantias fundamentais dos cidadãos. “A entidade tinha e tem, compromisso com a construção do estado de bem-estar social, com a ideia de redução e erradicação das desigualdades, superando uma situação de inaceitáveis contrastes entre riqueza e miséria, com o aperfeiçoamento do Estado democrático de direito”, explica o procurador.

Em seu currículo, tem destaque, dentre outras importantes funções públicas exercidas ao longo da carreira, sua atuação como procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, por três mandatos. Entre as principais realizações, está a estruturação de um Ministério Público forte e próximo da população. “O principal trabalho foi ajudar a construir um Ministério Público ativo, independente e aberto à sociedade. A política de comunicação foi feita para que a sociedade pudesse ouvir o seu Ministério Público sobre as questões principais de sua responsabilidade”, afirma Marrey.

Além da experiência nacional, o ex-procurador-geral também pôde atuar internacionalmente. Em 2019, Marrey foi chefe da Missão de Combate à Corrupção e Impunidade em Honduras, da Organização dos Estados Americanos (OEA). “Tratava-se de missão destinada a fortalecer as instituições da Justiça daquele País, que não têm garantias constitucionais tradicionais e dispõe de um Ministério Público hierarquizado. O trabalho foi muito interessante, desafiador e também penoso, estressante. Fica claro que somente o povo de um país pode resolver os seus problemas, a comunidade internacional somente pode ajudar”, declara o procurador.

Leia abaixo a entrevista completa:

MPD — Por quais motivos resolveu ingressar no Ministério Público, quais objetivos o impulsionam? 

Mesmo antes da Constituição de 1988, o Ministério Público já tinha uma importante responsabilidade de representar a sociedade em juízo especialmente em matéria penal, velar pelos direitos dos mais vulneráveis e de exigir o cumprimento da lei. A garantia da independência funcional dava o atrativo de ser fiel à sua consciência. Isto era e é, um importante estímulo para quem é idealista. Minha geração participou ativamente do movimento estudantil, pela volta do Estado democrático de direito e contra a ditadura. Houve uma identificação natural com as possibilidades de servir ao público e ajudar a construir uma sociedade democrática. 

MPD — A carreira no Ministério Público tem correspondido às expectativas? Recomendaria aos estudantes de Direito? 

Quase 41 anos depois de meu ingresso, estou convencido que fiz a escolha certa para as minhas aspirações como cidadão e profissional do Direito. A carreira não é isenta de dificuldades e desilusões, porém é possível fazer a diferença e ajudar efetivamente a construir um país melhor. Nada paga a satisfação de poder ajudar pessoas da periferia, porque conseguiu tirar de circulação um criminoso violento e perigoso ou de obter uma vitória no Superior Tribunal de Justiça [STJ] obrigando, o então Ministério da Aeronáutica, a fornecer os documentos relativos a acidente aéreo com grande número de vítimas, cujo acesso estava sendo negado. Recomendo a carreira aos estudantes que não tenham espírito burocrático, que tenham compromisso com o Estado democrático e que mantenham o entusiasmo nos olhos e na alma.

MPD — Tendo exercido o cargo de procurador-geral de Justiça, por três mandatos, poderia mencionar algumas das realizações de sua gestão que considere de suma importância? 

O principal trabalho foi ajudar a construir um Ministério Público ativo, independente e aberto à sociedade. A política de comunicação foi feita para que a sociedade pudesse ouvir o seu Ministério Público sobre as questões principais de sua responsabilidade. O trabalho foi de toda a instituição e não simplesmente pessoal. Houve ampliação de prédios, de presença, de atenção, uma verdadeira revolução em relação a modelos anteriores que vinham a ser praticados. A instituição passou a ser mais ouvida, passou a escutar mais a população e também prestou contas de seu trabalho. Foi assumido claro compromisso de defesa dos direitos da pessoa humana.

MPD — Além do cargo de procurador-geral, o senhor também exerceu outras importantes funções no governo. Poderia nos dizer quais foram e como isso contribuiu em sua formação e visão de mundo? 

Creio que o importante é manter o compromisso com a legalidade e exercitar os princípios republicanos da probidade e da impessoalidade. Ninguém tem o monopólio da virtude e da verdade. As atividades que exerci fora da instituição, tinham por objeto essencialmente a área da Justiça e dos Direitos Humanos, como na Secretaria de Estado da Justiça e Defesa da Cidadania, por exemplo, o programa de proteção às testemunhas, coordenadoria da diversidade sexual e coordenadoria dos direitos da população negra e indígena, defesa dos direitos do consumidor, regularização fundiária e de áreas quilombolas, adolescentes infratores. Além disso, tive atuação presente na discussão das dotações orçamentárias do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, com objetivo de assegurar meios de funcionamento das instituições.

MPD — O senhor foi um dos fundadores do MPD, tendo exercido também a sua presidência. Como foi essa experiência? Quais as razões que levaram a criação do MPD, e como enxerga os objetivos da entidade? 

Creio que era um momento importante que se seguiu à volta plena do regime democrático no País, com nova Constituição. Havia uma aspiração de setores da sociedade e de promotores de justiça mais jovens e também alguns mais antigos, como Antonio Visconti, paradigma de promotor e nosso inspirador, que as novas atribuições fossem exercidas de maneira plena pelo Ministério Público, com independência e sem maiores delongas. A isto, se contrapunha uma visão conservadora que prevalecia na direção dos Ministérios Públicos em geral. A ideia era a criação de uma entidade que congregasse membros com uma visão mais arrojada, com princípios e crenças democráticos alinhados à nova Constituição e firme repúdio ao autoritarismo. Creio que o exercício foi muito importante para difundir uma nova visão do exercício da instituição e fiquei honrado com o exercício da presidência durante o período que me coube. Foi importante a presença na Assembleia Legislativa durante a tramitação de projeto de lei orgânica do Ministério Público, ao qual tínhamos importantes restrições. O projeto foi aprovado, mas a discussão acumulada foi muito relevante para o momento seguinte. A entidade tinha e tem compromisso com a construção do estado de bem-estar social, com a ideia de redução e erradicação das desigualdades, superando uma situação de inaceitáveis contrastes entre riqueza e miséria, com o aperfeiçoamento do Estado democrático de direito.

MPD — Recentemente, o senhor foi designado para uma missão internacional. Poderia nos contar como foi essa experiência e onde ocorreu? 

Exerci a chefia da Missão de Combate à Corrupção e Impunidade em Honduras, da Organização dos Estados Americanos [OEA], durante um ano. Tratava-se de missão destinada a fortalecer as instituições da Justiça daquele País, que não têm garantias constitucionais tradicionais e dispõe de um Ministério Público hierarquizado. A corrupção estrutural é sempre algo que subtrai fundos necessários ao atendimento da população em geral e atinge dados dramáticos em países com instituições mais frágeis e alto índice de impunidade, que levou à existência daquilo que chamei lá de “corrupção a céu aberto”, tamanha a falta de preocupação dos autores dos desvios, em que viessem a ser responsabilizados. A equipe da Missão era formada [por] mais de 50 pessoas, promotores, juízes e policiais de países latino-americanos e trabalhou diretamente com a Promotoria Especial do Ministério Público de Honduras. Foram apresentados processos de grande importância e contra pessoas normalmente impunes, de alto nível político e financeiro. Houve também treinamento de policiais, juízes e promotores, atividades educativas com a sociedade, também na área de direitos humanos e proteção de populações vulneráveis. A Missão acabou não sendo renovada pelo governo de Honduras, seis meses após minha saída. O trabalho foi muito interessante, desafiador e também penoso, estressante. Fica claro que somente o povo de um país pode resolver os seus problemas, a comunidade internacional somente pode ajudar.

MPD — Quais foram os principais desafios de suas gestões que poderia destacar? 

Convencer os membros da instituição que a proposta de atuação de sua gestão era a melhor para a sociedade e para garantir a fidelidade do Ministério Público à sua obrigação constitucional. A obtenção de recursos orçamentários, sempre foi um motivo de alta preocupação ano após ano. Sempre senti a responsabilidade que recai sobre o chefe da instituição na viabilização de um orçamento adequado, mantendo o mais elevado diálogo institucional com o Poder Executivo e o Poder Legislativo.

MPD — Sua gestão, à frente do Ministério Público de São Paulo, foi a responsável pela implantação do controle externo da atividade policial no estado, função esta que embora prevista na Constituição levou alguns anos para ser efetivada. Quais eram as dificuldades e a importância dessa função?  

Uma grande resistência da polícia civil, a falta de tradição em fazer esse controle de maneira estruturada e falando francamente, a falta de apoio de parcela da própria instituição do Ministério Público, que achava a atividade de difícil implementação. Lembro-me que a primeira visita de controle externo foi feita à Delegacia do 9º Distrito da Capital pelos então promotores de justiça Antonio Calil Filho, Gabriel Inellas e Ricardo Prado Pires de Campos, em ambiente de muita tensão, mas ao final sem incidentes maiores. Serviu para mostrar também que cumpriríamos o dever de maneira firme e equilibrada. Ainda hoje, o Ministério Público brasileiro, como um todo, não exerce a atividade como deveria, ficando claro que se trata de fiscalização de legalidade e eficiência, nunca a subordinação da atividade policial que é atribuição do Poder Executivo. A importância da atividade é manifesta. Em país que viveu longo período de ditadura, há de se respeitar os direitos e garantias individuais, prevenir e punir a tortura, evitar e punir abuso de poder e racismo, investigar os homicídios praticados em ação policial e separar o que é legítimo daquilo que é execução de suspeitos. Deve-se garantir que as polícias tenham condições de trabalhar para apurar e prevenir os crimes e que o façam na legalidade. Mas também se deve preocupar com as condições de trabalho dos servidores policiais, que se submetidos a salários insuficientes e exposição a risco desnecessários, não terão como prestar o serviço adequado.

MPD — Como o Ministério Público pode e deve contribuir nesse momento de crises importantes da história nacional? 

O Ministério Público brasileiro não deve retroceder um milímetro na exigência do cumprimento da Constituição e deve defender o regime democrático e suas instituições, como é sua obrigação constitucional. É papel do Ministério Público investigar e processar quem prega e pratica a violência, que expõe a saúde da população a risco, quem desvia dinheiro público. A pregação de fechamento de instituições democráticas é crime e ultrapassa os limites da liberdade de expressão do pensamento. É preocupante o fato de que enquanto a população se preocupa em sobreviver na pandemia, sejam feitas mudanças legislativas e regulamentares sem debate aprofundado, em matéria de improbidade e ambiental, aproveitando o momento para “passar a boiada”. A história julgará o papel de cada um em tempos de ameaça à democracia e da pandemia que vivemos. O Ministério Público e seus integrantes devem estar à altura desse enorme desafio. Isto impõe também conviver com a crítica e saber fazer autocrítica, a fim de continuar fiel ao mandamento constitucional e poder renovar sua legitimidade baseada na plenitude do cumprimento do dever assumido com o povo brasileiro.