Jornalismo para paz privilegia discurso da reconciliação
A cobertura jornalística deve contribuir para a construção de uma realidade social mais justa e pacífica com base no entendimento de que conflitos podem ser veiculados de diferentes maneiras sem perder o grau de veracidade. Assim, o conceito de jornalismo para paz surge com o objetivo dar voz a todas as partes envolvidas e, portanto, evidencia o discurso de resoluções, reconstrução e reconciliação. Em entrevista para a Revista MPD Dialógico 44, publicação que aborda paz e estabilidade social,a jornalista Anelise Zanoni Cardoso diz que a mudança de métodos relacionados à produção de informações requer coragem, mas não implica na perda de qualidade do produto oferecido.
Abaixo, o leitor confere a íntegra da entrevista, na qual a estudiosa afirma também que o público está mais acostumado com a veiculação de notícias negativas produtoras de sensação de insegurança, revolta e injustiça. No entanto, sugere que o “jornalismo para paz tenta reconstruir um triângulo entre comportamento, atitude e contradição, mostrando diferentes lados da notícia e apresentando aspectos que explicam como as coisas chegaram àquele aspecto”.
MPD Dialógico: Quem é a Anelise Zanoni Cardoso?

Anelise Zanoni – Sou uma apaixonada pela vida e por conhecer novas culturas, hábitos e pessoas. Talvez por este motivo tenha escolhido fazer jornalismo e optado pela carreira docente, o que me permite circular em diferentes campos. Minha graduação é em Comunicação Social (ênfase em Jornalismo), e foi feita na PUC/RS. Depois, fiz mestrado também em Comunicação Social na mesma instituição. Em 2013 terminei o Doutorado em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
MPD Dialógico: Como foi a sua educação antes do jornalismo?

Anelise Zanoni – Venho de uma família que considerava os estudos algo obrigatório e muito exigido, o que me transformou em uma aluna esforçada desde cedo. Estudei da pré-escola até a oitava série do Ensino Fundamental no Colégio Maria Auxiliadora, na cidade de Canoas (RS). Era uma escola privada, comandada por freiras da congregação Notre Dame e repleta de regras. Apesar disso, sempre fui uma boa aluna, tinha facilidade para aprender e me destacava na turma. Na pré-adolescência, passei a não gostar das tantas regras do colégio, porque me sentia presa naqueles padrões, e a cidade parecia pequena para meus desejos. Então, aos 13 anos, comecei a procurar novas escolas para estudar e encontrei o Colégio Rosário, um dos mais tradicionais em Porto Alegre. Convenci meu pai de que era importante estudar lá, fiz um exame de admissão e fui aprovada. Fiz todo o Ensino Médio no Colégio Rosário e considero um grande passo na minha vida, porque meu mundo ficou mais amplo, me sentia mais livre e fiz amizades que duram até hoje. Além disso, aprendi a me virar sozinha, porque precisava me deslocar para outra cidade para estudar, o que me demandava duas horas por dia de deslocamento (uma hora para ir e outra para voltar!)
MPD Dialógico: O que te levou ao jornalismo e aos estudos acadêmicos em jornalismo?

Anelise Zanoni – Eu sempre gostei muito de observar o mundo, de conversar com diferentes pessoas e de escrever. Entretanto, durante o colégio, pensava em fazer Odontologia – talvez pelo fato de eu estudar em um local muito focado no vestibular. Tal vontade foi passando à medida que a data da inscrição para o vestibular se aproximava. No dia de entregar a inscrição eu decidi que tentaria Publicidade e Propaganda na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Jornalismo na PUCRS. Algo me dizia que eu deveria seguir na área da indústria criativa, mas não sabia o que estava por vir. Acabei conquistando uma vaga no curso de Jornalismo aos 17 anos. Era tudo tão novo e estranho (eu recém havia saído do colégio!) que desde muito cedo comecei a procurar estágio na área para ver se eu me adaptava àquela mudança e passava a me identificar com a área.Fui monitora no Departamento de Jornalismo e, depois, comecei a trabalhar com produção em um canal de TV. Enquanto trabalhava e estudava, passava a gostar mais da profissão e a traçar os caminhos que eu gostaria de seguir. Depois, quando completei o quinto semestre de curso, consegui uma vaga de estudante no jornal Zero Hora, do Grupo RBS, onde consegui viver de perto a realidade da vida de jornalista. Terminei a faculdade em 2001, aos 21 anos, e segui trabalhando no jornal até 2011, aí como repórter e editora. Por ter uma trajetória muito voltada para a prática do jornalismo diário, sentia necessidade de estudar mais e complementar a dupla teoria e prática. Afinal, eu realmente gostava de estudar. Pouco tempo depois da minha formatura fiquei muito surpreendida com os atentados terroristas de 11 de setembro. Acompanhei a queda das torres pela TV e participei da cobertura jornalística para o jornal. Aquele tema despertou a vontade de estudar mais sobre o caso. Então, criei um projeto, amadureci a ideia e, no final de 2003, fiz uma seleção para o mestrado e voltei a ser estudante da PUCRS.Conciliei mestrado e vida repórter ao mesmo tempo, porque não queria deixar a prática de lado. Foi uma época difícil, principalmente devido ás exigências de uma redação de jornal. Mas consegui terminar a dissertação, que tinha como tema liberdade de imprensa e terrorismo. Logo após a defesa pedi uma licença não remunerada para o jornal e fui morar em Dublin, na Irlanda, para terminar um curso de inglês e trabalhar. Fiquei lá durante sete meses e, depois deste período, fiz algumas aulas como aluna especial na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Era o momento para pensar em uma próxima etapa de estudos. Em 2009, ingressei no Doutorado da UFRGS com um projeto relacionado a mais um assunto que mexia comigo: migrações forçadas. Foi trabalhando com o tema “refugiados” que surgiu a ideia de pensar no jornalismo para paz e para guerra.
MPD Dialógico: O que já fez e faz na profissão?

Anelise Zanoni – Trabalhei doze anos na redação do jornal Zero Hora, em Porto Alegre. Durante este tempo atuei como repórter e editora de várias editoriais. Na reportagem iniciei na editoria de Internacional, depois fiz alguns anos de Geral, Polícia e Variedades. Também fui repórter de cadernos semanais: Saúde, Turismo e Ambiente. Nos últimos quatro anos de trabalho acabei me dedicando também à edição de suplementos e atuava como “coringa” em diversas áreas. Assinei edições como os cadernos como Meu Filho, Viagem, vida, entre outros.Entre 2006 e 2007, quando vivi em Dublin, na Irlanda, trabalhei como colaboradora do jornal Sunday Independent, e publicava artigos quase toda semana. Depois de sair do Zero Hora, em 2011, decidi lançar voo solo e encontrei um universo ainda mais amplo. Fui selecionada para uma vaga como professora do curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e também da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM/Sul). Neste período, fiz uma série de trabalhos como freelancer – incluindo edição e reportagem da revista do Instituto Humanitas (da Unisinos), reportagem para revista Hola!, freelancer em assessorias de imprensa, consultorias e alguns trabalhos para a editora Abril, principalmente para a Veja Porto Alegre.Atualmente, sou professora dos cursos de Jornalismo e Relações Públicas da Unisinos e também coordenadora do setor de Jornalismo do site Unicos.cc, pertencente à Agência Experimental de Comunicação da Unisinos (Agexcom). Tenho 40 horas de trabalho por semana na universidade, mas não abro mão de seguir como freelancer em projetos principalmente relacionados ao lazer. Também estou lançando o site Saborosa Viagem (saborosaviagem.com.br) em parceria com uma jornalista. Escreveremos sobre gastronomia, viagem e lazer.
————————————————————————-

JORNALISMO PARA PAZ OU PARA A GUERRA?
MPD Dialógico: Por que o seu interesse pela reflexão sobre jornalismo para a paz?

Anelise Zanoni – Sempre me preocupei com a questão da responsabilidade na profissão de jornalista e, durante minha trajetória, percebia que a rotina do dia a dia afastava os profissionais do censo crítico, da ética e da responsabilidade. Entretanto, o embrião da pesquisa nasceu em 2002, quando tive a missão de acompanhar a chegada do primeiro grupo de refugiados afegãos no Brasil que desembarcava em Porto Alegre por meio de um programa de reassentamento. Eu tinha 22 anos, era recém formada, e não me sentia preparada para aquele momento, porque sentia o peso da responsabilidade de trabalhar com informações de um assunto importante e desconhecido por mim.Mesmo assim, fui em frente e passei quase três anos cuidando do assunto (virei quase uma “setorista de refugiados”). Ao mesmo tempo em que o território brasileiro era desconhecido aos refugiados reassentados, a temática causava desconforto nos jornalistas, que ainda não conheciam a questão a fundo e partiam para reportagens com um esquema mental que relacionava a identidade do refugiado a um elemento ameaçador e um tanto estranho para os padrões ditos “normais”. Na redação, era habitual ouvir comentários que relacionavam a nacionalidade dos novos moradores ao terrorista Osama Bin Laden. Também era comum a manifestação de leitores, que ligavam ou mandavam e-mails questionando as condições e o interesse do Brasil de recebê-los. Ainda assim, o assunto do refúgio apresentava valor-notícia suficiente para conquistar reportagens nos jornais e a atenção de autoridades, que aproveitaram também o momento para se promover. Diante deste cenário, o trabalho jornalístico da época produzido por repórteres com mais experiência que eu parecia ter poucas diferenças entre a cobertura feita por mim, uma recém-formada. De modo geral, tinha a impressão de que os refugiados eram retratados como seres exóticos e que os jornalistas inspiravam-se muito nos textos produzidos pelas agências de notícias do exterior. Por muitas vezes, os refugiados noticiados poderiam ser classificados como a verdadeira representação do lixo humano, citado diversas vezes nas obras de Bauman (2007). Devido à cobertura que fazíamos, fui objeto de raiva dos afegãos, que se sentiam prejudicados com alguns textos e por explorarmos as mazelas de suas histórias de vida. Acompanhei produções fotográficas que exigiam o uso de turbantes ou vestimentas típicas para causar impacto nas imagens. Bebi chá ao som de músicas tradicionais e sob a penumbra do narguilé. Vigiei as famílias a pedido dos editores, os persegui de carro como se fossem celebridades no dia em que desembarcaram no país, os acompanhei a passeios no parque e ouvi deles pedidos de afastamento. Eles não queriam ser notícia. Claro que todas estas reflexões são recentes e me ajudaram a construir o projeto de pesquisa e a estudar formas para fazer coberturas menos sensacionais. Foi durante este processo de estudos, que durou pouco mais de quatro anos, que conheci o jornalismo para paz, uma teoria pouco difundida no Brasil e ainda pouco acreditada.
MPD Dialógico: A partir do seu estudo, como considerar a cobertura jornalística sobre violência em meio a uma guerra urbana?

Anelise Zanoni – Ao analisar episódios de desordens contemporâneas e as relações entre a cobertura jornalística e a guerra, percebe-se um envolvimento quase simbiótico entre a prática profissional e o cenário de violência, seja ela urbana ou terrorista. O conflito insere-se naturalmente nos critérios de noticiabilidade, produz imagens espetaculares, textos emocionantes e ajuda na venda do trabalho jornalístico, o que faz da relação entre mídia e violência uma verdadeira história de amor que perdura há décadas e que envolve relações que percorrem diferentes campos, como o da política e da economia. Entretanto, isso não significa que o jornalista está fadado a veicular notícias negativas ou violentas apenas para garantir a fidelidade do público. Também deve haver espírito crítico sobre os desejos de algumas empresas jornalísticas, que impedem de modificar as coberturas. A nossa guerra das ruas vende, porque amplia nosso medo, nos dá insegurança. Entretanto, estar informado também é uma garantia de segurança, de que o mal pode estar longe. Naturalmente, queremos estar informados para nos proteger, então, devemos entender que o trabalho jornalístico é importante neste cenário. Mas não podemos nos abster das perguntas: será que aquilo que vemos por meio da imprensa é a imagem mais próxima do real? É difícil fazer com que o público leve em consideração que, no trabalho jornalístico, deve-se considerar a subjetividade do repórter, a influência das empresas e até mesmo as rotinas jornalísticas. Embora a própria profissão esteja de alguma forma atrelada ao papel social e promotor da cidadania, o jornalista e as empresas de comunicação se assumem como integrantes de um ciclo de interesses e tradições voltados algumas vezes para a violência. A imprensa não só reproduz discursos, mas os constrói a partir de enquadramentos garimpados conforme valores predefinidos e que têm a ver com fatores que envolvem políticas corporativas e comerciais. O resultado final tem o mérito de produzir encantamento, imagens e um quadro da realidade que nem sempre é real. A partir da porção veiculada, uma série de itens passa a fazer parte do pensamento do público, que o ajudará a formar opiniões sobre determinado assunto e atitudes. Dessa forma, mudar métodos relacionados à produção da informação requer coragem, o que não implica na perda de qualidade do produto oferecido. Mudar a concepção de cobertura jornalística, buscando pontos de vista menos belicosos e mais informativos é fazer um refinamento da história a ser contada.
MPD Dialógico: Qual o papel do jornalista em coberturas de conflitos?
Anelise Zanoni – Sabemos que o jornalismo é uma prática de comunicação muito particular, na qual é preciso lançar elementos para que a relação entre o discurso e a atenção do público seja efetivada. Tendo em vista que o acontecimento jornalístico geralmente se define no contraste entre o excepcional e aquilo que é reconhecido como normal, é esta variação entre as diferenças que deveria encantar e fazer o jornalismo existir. Para mudar e conseguir transformar a paisagem das coberturas sobre conflitos, é preciso que o profissional se dê conta daquilo que produz. A grande questão não é eliminar as reportagens sobre conflitos, mas ampliá-las de maneira qualitativa para que o tema ingresse em um campo problemático e construa diferentes perspectivas sobre o fenômeno. É preciso trazer diferentes perspectivas para compreendermos o fenômeno e o colocarmos em debate. Deve-se mudar a forma de ler o fenômeno para que novas atitudes sejam empreendidas. Pensar em uma prática voltada para ações de mais divulgação do tema, porém menos violenta e mais inclusiva, requer também a possibilidade de associar o tradicional caráter comercial do jornalismo à produção de conteúdo analítico e crítico sobre conflitos. Dessa forma, a venda do produto estaria muito mais ligada ao seu caráter de qualidade e não apenas à possibilidade de ampliação da audiência. A movimentação para se chegar nesta fórmula requer, entretanto, um interesse corporativo e pessoal do jornalista para tratar a informação de maneira diferenciada.
MPD Dialógico: A cobertura de confrontos urbanos no Rio de Janeiro difere ou não de conflitos armados ao redor do mundo?
Anelise Zanoni – Não estudei especificamente os conflitos urbanos no Rio de Janeiro. Os cenários, as causas, as perspectivas políticas são diferentes em quaisquer lugares. Entretanto, seja no Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo ou em cidades da Síria ou do Afeganistão estamos falando do uso da violência para legitimar algum tipo de poder. Por isso,quando analisamos coberturas jornalísticas sobre violência, encontramos diversas semelhanças em diferentes pontos do mundo.Muitas coberturas têm seu produto como um reflexo do controle, da manipulação e da autocensura provenientes do jogo de poder entre autoridades e criminosos. A relação entre os meios de comunicação e o terror (o crime, a violência, a criminalidade) é representada por sentimentos paradoxais: ao mesmo tempo em que os jornalistas desejam mostrá-lo (porque tem importância e critérios de noticiabilidade), os criminosos ou terroristas têm também interesse em fazer esta divulgação (para ampliar o próprio poder e para disseminar mais a cultura do medo). No exercício de seu papel, alguns jornalistas ampliam a retórica de governos e de líderes que pretendem responder contra a violência. O principal objetivo é mostrar à sociedade estabilidade, marginalizando os terroristas (ou facções criminosas no caso do Brasil) e ganhando suporte das políticas públicas. O ponto de vista dos governos e suas reações se transformam nos maiores focos da cobertura jornalística de eventos como estes, assim como em meios oficiais de informação e da formação da opinião pública.
MPD Dialógico: Pode se dizer que, em estado de guerra, a primeira vitima é a verdade? Por quê?
Anelise Zanoni – Prefiro falar de construções de realidade, em vez de verdade. Os discursos jornalísticos tipificam experiências, que podem ser agrupadas em amplas categorias, as quais ganham sentido individualmente e coletivamente. O processo de apoderamento daquilo que é oferecido só acontece devido à aceitação do indivíduo àquilo que lhe é dado e todo esse processo é feito por meio de enquadramentos jornalísticos, que seriam os responsáveis por dar sentido aos acontecimentos. Dentro da esfera jornalística, os enquadramentos utilizados pela imprensa passam por uma série de filtros até chegarem ao público como uma realidade e são decorrentes de rotinas jornalísticas que incluem desde a escolha das notícias a serem publicadas até a ideologia dos veículos de comunicação que estão inseridos no dia a dia do jornalista. Também deve-se considerar que as notícias são elegidas e apresentadas de acordo com o perfil e a realidade do público (audiência). Portanto, se o jornalista ou a empresa têm posicionamentos sobre este estado de guerra ou se sentem de alguma forma relacionados a este acontecimento, certamente utilizarão enquadramentos voltados para essa questão. O jornalista busca objetividade, o que é diferente da neutralidade. Entretanto, a zona entre a objetividade e a comodidade profissional tem espaços muito tênues.
MPD Dialógico: O que a senhora define como construção de verdades nestas coberturas?
Anelise Zanoni – Acho que respondi na questão anterior!
MPD Dialógico: Qual a relação entre mídia e violência?
Anelise Zanoni – De forma objetiva, pode-se afirmar que há uma relação de dependência entre a mídia e a violência. O conflito é um evento midiático, estruturador de narrativas e produtor de imagens impactantes – catástrofes, violência e vitimização – que são partes constituintes da atualidade e se impõem a outros assuntos. Guerras são formas de controle humano e convergem em desafios éticos, técnicos e conceituais para o jornalismo. Na cobertura jornalística, o dilema não é tão somente a administração destes desentendimentos entre grupos e interesses opostos, porque estes já são inerentes à produção jornalística. O pesquisador Carlos Eduardo Franciscato (2003), por exemplo, diz que as coberturas voltadas para guerra conduzem a uma intensificação das potencialidades e dilemas no tratamento de textos e imagens geralmente voltados para a produção da morte. Neste aspecto, a situação contemporânea do jornalismo está centrada principalmente na supervalorização do espetáculo das narrativas, o que se transforma em dilema ético, porque tais discursos são provenientes de indivíduos objetos deste espetáculo e que se vêem como inimigos. A própria retórica jornalística, já é naturalmente entrelaçada em um contexto que privilegia a guerra e os estereótipos negativos, o que faz o público pensar que este é um enquadramento de realidade natural. Por isso, por uma lógica de pensamento, temos a tendência de considerar este padrão como normal e efetivo para os discursos, principalmente para aqueles com origem nos conflitos.
MPD Dialógico: De onde nascem as ideias de um jornalismo para a guerra e outro para a paz?
Anelise Zanoni – O pesquisador norueguês, Johan Galtung é um dos primeiros a refletir sobre a possibilidade de o jornalismo atuar como construtor de uma paisagem voltada para paz. As bases para o conceito fazem parte um movimento de reforma do jornalismo internacional, que teve início em meados da década de 60, com a publicação do artigo The Structure of Foreign News, em 1965, em uma parceria entre Galtung e Mari Holmboe Ruge. Na época, os pesquisadores colocavam em questão como os eventos se transformavam em notícia e, para isso, trabalharam com o fato de a mesma seguir linhas de edição que partiam de convenções jornalísticas engessadas, enquanto o próprio acontecimento exigia flexibilidade e perspectivas mais amplas para ser compreendido. Em um momento de reflexão sobre a comunidade interpretativa dos jornalistas, os pesquisadores trouxeram elementos que seriam norteadores de critérios de noticiabilidade e perceberam que quanto mais impactante, significativo, inesperado e negativo o evento, maior seria sua amplitude e a probabilidade de ser fixado pelo público. Na época, o estudo reafirmou a ideia de que as notícias negativas são mais atrativas, fazendo as pessoas terem um julgamento conjunto, massificado. Também se entendeu que coberturas distanciadas da paz eram mais inesperadas e causavam reações do público – ódio, raiva, sentimento de injustiça, entre outros. Considerado um dos mais célebres investigadores pela paz, Galtung, em 1969, passou a reconsiderar seus estudos iniciais e fez uma distinção entre a paz negativa e a positiva, e foi sobretudo sua tese sobre violência estrutural que orientou os trabalhos de uma geração de pensadores.
MPD Dialógico: Quais os elementos que separam o jornalismo para guerra e o jornalismo para a paz?

Anelise Zanoni – Em busca de impacto e de audiência, é uma tendência trabalhar informações por meio do jornalismo voltado para a guerra. Por ser considerado engajado (embedded), o método não se refere exclusivamente ao tratamento de informações herdadas de circunstâncias bélicas, mas procura no outro (o personagem, o sujeito ou um fato em si) artefatos que alimentam condições consideradas essenciais para atrair a atenção do público. O trabalho tradicional do jornalista volta-se geralmente para o jornalismo de guerra porque a cobertura jornalística tem foco na arena do conflito e evidencia consequências visíveis como a morte, os danos materiais e os feridos. Neste caso, o conflito apresenta-se como estratégia para a vitória. Há também uma orientação para a propaganda por beneficiar os males que podem ser causados para a elite. Além disso, as ameaças entre os inimigos são valorizadas como forma de controle da sociedade e as iniciativas de paz são ocultadas. A vitória é apresentada como uma certeza. A partir do conceito de jornalismo para paz, é lançada a proposta na qual a disciplina funciona como ferramenta que dá visibilidade a atitudes de promoção da paz. As premissas são baseadas na compreensão de valores da não violência e no entendimento de que um conflito pode ser veiculado de diferentes maneiras sem perder o grau de veracidade. A estrutura das escolhas é feita a partir da ideia de apresentar o conflito como um espaço em aberto. A ideia é analisar suas causas e consequências a partir de diferentes pontos, que podem incluir fatores históricos e de cultura. Vencedores e perdedores têm histórias para contar, e preceitos de jornalismo e de alteridade são aplicados. Além disso, neste caso, o trabalho jornalístico dá voz para aqueles que não têm voz, apresentando o sofrimento de todas as partes. Também deve-se considerar que iniciativas de paz são valorizadas como forma de prevenir os conflitos. A cultura, a identidade e a estrutura social de cada um são evidenciadas. O discurso privilegia resoluções, a reconstrução e a reconciliação.
MPD Dialógico: Na sua visão, qual a relação entre o público e a produção de um jornalismo para guerra e de um jornalismo para a paz?
Anelise Zanoni – Deve-se considerar que imagens entrelaçadas em histórias emocionantes ajudam a construir imaginários sobre a própria guerra, causam emoção, visibilidade e audiência a qualquer veículo de comunicação. Cenas e textos que promovem representações negativas fortalecem o imaginário do público – e suas expectativas em relação à guerra – e reforçam bases ligadas à audiência e ao sucesso da cobertura. Por estes motivos é fácil vender o jornalismo para guerra. O público está mais acostumado com este modelo e o entende como normal, padrão. O jornalismo para paz, por outro lado, tenta reconstruir um triângulo entre comportamento, atitude e contradição, mostrando diferentes lados da notícia e apresentando aspectos que explicam como as coisas chegaram àquele aspecto – essencial se quisermos mudar pensamentos e atitudes.
MPD Dialógico: Quais os perfis dos públicos que consomem as informações de um jornalismo para a paz?
Anelise Zanoni – Qualquer público pode consumir um jornalismo para paz, basta os jornalistas e as empresas jornalísticas estarem aptas a aceitar as propostas. É sempre importante lembrar que, nestes casos, o conflito não será minimizado. Pelo contrário, serão oferecidas informações capazes de nos fazer pensar mais sobre a temática, conhecer outras perspectivas e atores dentro de cada acontecimento. O jornalismo para paz é difícil de ser aplicado porque exige estudo, conhecimento e técnica, valores que dependem de tempo, algo raro dentro das rotinas jornalísticas.
MPD Dialógico: Como o jornalista pode atuar na perspectiva de paz?
Anelise Zanoni – O jornalista precisa primeiro dar-se conta daquilo que produz e para quem produz. Em textos sobre violência, conflito ou assuntos relacionados a esta temática é preciso valorizar textos que contemplem a individualidade de cada um, sua cultura e estrutura social, apontando principalmente explicações sobre os acontecimentos e desdobramentos para os fatos. Deve-se evitar generalizações relacionadas principalmente à etnia, religião, nacionalidade ou cor de pele. É necessário adotar um modelo proativo, encontrando noticiabilidade e desconsiderando a ideia de que vivemos em uma batalha travada entre o bem e o mal. Talvez por exigir tempo e dedicação, o jornalismo para paz seja um conceito difícil de ser aplicado nas redações. Entretanto, seja qual for o tema escolhido, boa parte dos jornalistas brasileiros não se dedica ao aperfeiçoamento profissional e ao aprofundamento, fato que não tem ligação apenas com a rotina atribulada das redações, mas também com a falta de interesse dos profissionais. Eugênio Bucci, por exemplo, já afirmava que os jornalistas que atuam nas redações dão mostras de um sentimento antiacadêmico e antiintelectual sem precedentes, o que compromete o desenvolvimento da própria profissão e de suas características. Neste sentido, a redação deveria ser o núcleo encarregado de pensar, e o conteúdo que produz refletiria diretamente a forma como pensa.
MPD Dialógico: Quais são as fragilidades do discurso de um jornalismo para a paz? Como resolver estas fragilidades?
Anelise Zanoni – Embora represente uma vertente positiva do trabalho da imprensa, o paradigma tem fragilidades e ainda é pouco debatido no Brasil. O conceito esbarra principalmente nas redações e desconsidera alguns limites que atuam na rotina de trabalho dos jornalistas, como o número reduzido de pessoal, a falta de tempo e de recursos, as hierarquias e as dificuldades de acesso à cena da notícia. Mesmo considerando que o paradigma tenha objetivo nobre, o pesquisador Hanitzsch (2007), que é um opositor à ideia de Galtung, acredita que o conceito é aplicável apenas para aqueles que estão ligados à pesquisa acadêmica, espaço onde geralmente é feita a crítica sem saber exatamente como é feita a cobertura jornalística. Enquanto em alguns aspectos os princípios básicos já tenham sido incorporados no trabalho diário, outras características para ele parecem impraticáveis na rotina do jornalismo, pois os veículos de comunicação mantêm foco na audiência, a qual, muitas vezes, está relacionada a assuntos espetaculares. Dentro da realidade, a guerra, o conflito e as informações negativas têm mais apelo que a paz, porque sugerem imagens mais impactantes, criam imaginários, lidam com sentimentos mais intensos e, ao mesmo tempo, fragmentam e negam a própria complexidade. Entretanto, eu acredito que o espaço à instantaneidade e aos assuntos espetaculares esteja cada vez mais endereçado à internet. Principalmente os jornais têm condições de trabalhar com questões de forma mais aprofundada, o que poderia promover novas discussões sobre temas como violência e conflitos. Mas para assumir as características de um jornalismo para paz, o profissional precisaria reconstituir os fatos com mais aprofundamento e tempo de pesquisa.
MPD Dialógico: Como construir uma cobertura de conflitos mais apurada, menos opaca e com mais utilidade ao púbico? O que é construir recortes da humanidade menos violentos e unilaterais?

Anelise Zanoni – A técnica do jornalismo para paz pode ser entendida como agente de desenvolvimento, principalmente pela criação de uma consciência crítica no público, o que levaria a encorajar uma transição nas práticas de mobilização, mudar opiniões e atitudes e, inclusive, construir uma realidade mais honesta entre diversidades culturais. Em termos gerais, o paradigma proposto é uma estratégia para construir recortes da realidade menos violentos e de uma só voz (unilaterais), porém, verdadeiros. Para isso, poderiam ser utilizadas categorias diferentes de enquadramento para serem aplicadas em narrativas sobre conflitos em geral. A partir da ideia, fatos violentos, discórdias ou guerras não são ignorados, mas anunciados a partir de quadros nos quais todas as partes envolvidas ganham voz. Ou seja, é no sentido de trabalhar a palavra e o poder delas que o jornalismo para paz atua. Como técnica, o método incentiva a ordem social, porque inclui o discurso do conflito ou da diferença social como estratégia de paz e reflexão. O desafio, portanto, é promover o engajamento do público e retirá-lo da apatia. Com isso, evitar-se-ia discursos padrão, coberturas homogeneizadas e pouco reflexivas, típicas da produção de informação para as massas. Neste caso, a mediação até chegar ao público passa por níveis no qual o profissional faz escolhas capazes de levar o destinatário a conhecer possibilidades de paz e novas realidades sobre o tema.
MPD Dialógico: Afinal, como o jornalismo mediador da paz é concretizado?
Anelise Zanoni – É no sentido de trabalhar a palavra e o poder delas que o jornalismo para paz atua. O paradigma constrói-se a partir de um repensar sobre o fazer jornalístico – capaz de mudar a opinião pública, as atitudes e as ações que levam aos atos violentos. Sob esse guarda-chuva respingam também possibilidades para se evitar os discursos padrão e a cobertura padronizada, modulada e pouco reflexiva. Se o jornalista for compreendido também como educador e transformador da realidade, a partir da divulgação das notícias e de diferentes faces do acontecimento, poderá, sim, atuar como um promotor da paz.