O entrevistado do mês é o procurador de Justiça Charles Hamilton Santos Lima, membro do Ministério Público do Estado de Pernambuco desde 1994, onde atuou como Promotor de Justiça em diversas cidades. Também integrou o Conselho Superior do Ministério Público (2017/18) e o Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça (2017/18).

“O Ministério Público, ao longo dos mais de trinta anos de ordem constitucional, tem, via de regra, se esforçado para implementar os objetivos da república conforme definidos na Constituição. Essa é uma obra inacabada. A própria ideia de república que implica em igualdade e cidadania para todos é uma quimera para parcela significativa da sociedade que vive a margem e alheios de direitos elementares.

Confira abaixo a entrevista na íntegra: 

  1. Quando o Sr. decidiu que queria ser promotor de justiça e por quê?

Eu me formei em 1992 e, naquela época, logo após a promulgação da Constituição Federal, as instituições estavam se estruturando e realizando muitos concursos. Tínhamos diversas oportunidades, mas, quando eu comecei a estudar para o concurso do Ministério Público, me identifiquei com a instituição e seu papel social. Foi um concurso difícil, poucos aprovados e eu, na minha primeira tentativa, consegui passar. Assim que fui nomeado desisti dos outros concursos em que estava inscrito.

  1. Quais pontos da sua carreira no Ministério Público que o Sr. destacaria?

Destacaria dois pontos.

Primeiro, o início da carreira, atuando em Promotoria de Justiça única e com todas as atribuições e numa época que não tínhamos o acesso à comunicação que se tem hoje. Tínhamos que ter e dar respostas para as demandas que chegavam – nas diversas áreas – e também descobrir os limites da nossa atuação, sobretudo no tocante aos direitos difusos e coletivos.

A sociedade estava acostumada com o Promotor de Justiça que atuava praticamente só na parte criminal – sobretudo a partir do olhar da polícia – e na área de família. Temas como Infância e Juventude, participação popular por meio de Conselhos, Improbidade Administrativa, Meio Ambiente, Consumidor eram temas novos e implicavam em mudanças no status quo e na dinâmica das cidades. Tínhamos que fazer isso sem manual e sem muitas redes de proteção.

Depois, a participação do Conselho Superior. Ali você tem uma oportunidade ímpar de ver a instituição como um todo. Ver a atuação dos seus membros, suas dificuldades e suas iniciativas, e, para além disso, vocalizar os anseios de muitos colegas, contribuir na formulação das diretrizes institucionais. É um aprendizado sem dúvida.

  1. Quais são os maiores desafios e a maior satisfação dessa profissão para o Sr.?

Mesmo com as mudanças ocorridas nas últimas décadas, acredito que os principais desafios permanecem. Eles são constantes. Eu me refiro ao exercício, por parte do Promotor e do Procurador de Justiça, das suas atribuições com independência funcional. Em diversos momentos somos impelidos a agir de modo contrário ao que pensa a maioria da população. É importante ter em mente que as maiorias são circunstanciais e, não raro, se formam em temas ou tendências que a Carta Política não permite a flexibilização – pena de morte e redução da maioridade penal são dois exemplos. Noutros momentos, a atividade econômica entra em conflito com a preservação do meio ambiente e, nesses embates, cabe ao promotor de justiça zelar pelo bem ambiental. Eu diria que o papel do membro do Ministério Público lembra o personagem Dr. Stockmann da peça Um Inimigo do Povo, de Ibsen.

  1. Na sua opinião, quais são os pontos fortes do MP e onde a instituição precisa melhorar?

Sem dúvida o ponto forte dos Ministérios Públicos é o seu quadro de membros e servidores. Para bem exercer a sua atividade no MP, o promotor ou procurador de justiça tem, por um lado, uma série de limitações – as vedações do artigo 128, § 5º, da Constituição – e, em outra mão, um conjunto de garantias para que seus integrantes possam agir com independência funcional e, sobremaneira, com imparcialidade. Não tenho dúvida que a maioria dos seus membros age assim e isso é o que empresta credibilidade à instituição.

Como aspecto de melhoria, penso que o modelo de estruturação dos MPs – mais gente trabalhando, mais prédios para gerir – leva a um inchaço do ponto de vista orçamentário. Hoje, parece que, mais fortemente do que era no passado, temos uma autonomia institucional muito frágil e, em alguns casos, fictícia. Isso dificulta, em determinados momentos, a contraposição a algumas medidas do poder político.

E isso leva a outro aspecto que é a inação do Ministério Público ante abusos cometidos por integrantes de outras instituições políticas. Em determinados momentos e lugares fica difícil ver até onde vai o grupo político que está a frente do ente federativo e onde começa o Ministério Público. Isso não é só em relação ao Ministério Público. Em alguns estados, essa prática contaminou outros poderes e instituições. Quem diz isso é Joaquim Falcão em um artigo intitulado “Os inseparáveis poderes”, publicado em 2017.

  1. Quais são os maiores desafios e quais devem ser os objetivos do Ministério Público neste momento?

O Ministério Público, ao longo dos mais de trinta anos de ordem constitucional, tem, via de regra, se esforçado para implementar os objetivos da república conforme definidos na Constituição. Essa é uma obra inacabada. A própria ideia de república que implica em igualdade e cidadania para todos é uma quimera para parcela significativa da sociedade que vive a margem e alheios de direitos elementares.

Contribuir para isso ocorra – a efetivação dos direitos individuais e sociais – é o grande desafio do Ministério Público brasileiro. Cada brasileiro com acesso à educação, saúde, segurança, meio ambiente protegido e uma Administração Pública que busque o bem comum. Esses são, na minha singela opinião, os objetivos institucionais que devem nortear a atuação dos promotores e procuradores.

  1. Qual o papel e a importância do MP em uma crise – sanitária, econômica e social – como a que vivemos agora, do Covid-19?

Penso que o Ministério Público tem três papéis importantes nesse momento de pandemia.

O primeiro é tentar manter as suas atividades como instituição essencial à Justiça. Temos processos criminais, infância e juventude, cíveis e ações civis públicas que precisam ser impulsionados mesmo com a crise sanitária. Em cada processo desse há pessoas, seus dramas e suas vidas em jogo. Não podemos nos furtar a impulsioná-los, alguns são processos eletrônicos – o que facilita – e há os físicos que estão com os prazos suspensos, mas, em alguns casos, demandam urgência.

O segundo papel, a meu ver, é em relação à resposta institucional à epidemia. Essa crise sanitária demanda o esforço da sociedade e do Estado. E entenda-se o Estado por todos os seus entes e seus ramos. É preciso articulação e conjugação de esforços. Os Ministérios Públicos têm um papel importante nessa conjugação. Isso desde o Procurador Geral da República até cada um dos promotores de justiça espalhados pelo país.

Por fim, como defensor do regime democrático, o Ministério Público deve estar atento e atuante no que diz respeito às instituições e o livre exercício de suas atribuições e, também, no que toca aos direitos fundamentais. Além disso, temos visto embates entre instituições e movimentos que pedem soluções autoritárias – como fechamento do Congresso e do STF. Aqui entra a questão do paradoxo da tolerância, conforme formulado por Karl Popper, o regime democrático não pode tolerar a intolerância sob pena do seu aniquilamento. Esses que pregam soluções fora da ordem constitucional, nas ruas ou em redes sociais, devem ser responsabilizados e aí atua o Ministério Público como defensor do regime democrático.

  1. Quando e por que você decidiu se associar ao MPD?

Lembro que em 1998, a Escola do Ministério Público de Pernambuco realizou um curso na área da Infância e Juventude. O tema do curso era a estruturação de Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente. Entre os palestrantes estavam Paulo Afonso Garrido de Paula e Marcelo Goulart. Eu me recordo que eles mencionaram o MPD e falaram da sua atuação. Na época, eu e um grupo de colegas promotores e procuradores de justiça aqui de Pernambuco nos filiamos ao MPD. Durante um tempo, eu acompanhei a distância e mais recentemente, através de contato com Roberto Livianu, passei a ter maior interação com as atividades do MPD, chegando a participar da Diretoria na gestão de Laila Shukair.

  1. Qual a importância do movimento na sua opinião?

O MPD, na minha opinião, tem um papel profundamente relevante. Ele nos permite um olhar crítico sobre a ação do Ministério Público e uma interação com a sociedade na busca por uma reflexão sobre os seus anseios e expectativas sobre o papel do Ministério Público. Não podemos esquecer que a Constituição de 1988 estabeleceu diretrizes claras sobre o papel do Estado brasileiro e seus objetivos (construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação) e incumbiu o Ministério Público da defesa da Ordem Jurídica e do Regime Democrático. Essa missão é complexa sobretudo em razão do que estamos vivendo nos últimos anos e, em especial, no presente momento em que, ao lado dos desafios da pandemia do coronavírus, temos, aqui no Brasil, sérias ameaças às instituições e ao regime democrático. Nesse contexto, cresce a importância de se conhecer bem o seu papel e agir de acordo com as premissas constitucionais. 

  1. Se você pudesse dar um conselho para um jovem formado em direito e que pretende ingressar no Ministério Público, qual seria? 

Nesse particular, eu gostaria de relembrar um texto de Mazzilli, no qual ele menciona aqueles buscam o Ministério Público porque trata-se de uma carreira de ponta do funcionalismo público, significando uma opção profissional e salarial que muitos dos candidatos não conseguiriam encontrar na atividade privada. Ele destaca aqueles que a escolhem apenas e tão somente preocupados com isso. Estes, ele arremata, não escolheram a instituição, essa é que os escolheu.

Eu entendo que aquele que pretenda ingressar no Ministério Público não deve incorrer nesse erro. A carreira, o status e o salário são importantes sem dúvida, mas é necessário a identificação com a missão institucional.

A atividade do Ministério Público, quando se veste a camisa da instituição, tem muito dissabores e é preciso fleuma. Temos vitórias e derrotas ao longo do caminho, mas é preciso se manter sereno.

Por fim, eu gostaria de referir um poema de Rudyard Kipling que, ao meu sentir, diz algo sobre o que é atuar no Ministério Público.

Se és capaz de conservar o teu bom senso e a calma,

Quando os outros os perdem, e te acusam disso,

Se és capaz de confiar em ti, quando te ti duvidam

E, no entanto, perdoares que duvidem,

Se és capaz de esperar, sem perderes a esperança

E não caluniares os que te caluniam,

Se és capaz de sonhar, sem que o sonho te domine,

E pensar, sem reduzir o pensamento a vício,

Se és capaz de enfrentar o Triunfo e o Desastre,

Sem fazer distinção entre estes dois impostores,

Se és capaz de ouvir a verdade que disseste,

Transformada por canalhas em armadilhas aos tolos,

Se és capaz de ver destruído o ideal da vida inteira

E construí-lo outra vez com ferramentas gastas,

Se és capaz de arriscar todos os teus haveres

Num lance corajoso, alheio ao resultado,

E perder e começar de novo o teu caminho,

Sem que ouça um suspiro quem seguir ao teu lado,

Se és capaz de forçar os teus músculos e nervos

E fazê-los servir se já quase não servem,

Sustentando-te a ti, quando nada em ti resta,

A não ser a vontade que diz: Enfrenta!

Se és capaz de falar ao povo e ficar digno

Ou de passear com reis conservando-te o mesmo,

Se não pode abalar-te amigo ou inimigo

E não sofrem decepção os que contam contigo,

Se podes preencher todo minuto que passa

Com sessenta segundos de tarefa acertada,

Se assim fores, meu filho, a Terra será tua,

Será teu tudo que nela existe

E não receies que te o tomem,

Mas (ainda melhor que tudo isto)

Se assim fores, serás um homem.