09/05/2016
Por Rômulo de Andrade Moreira
A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgando o Recurso em Habeas Corpus 59.759, interposto pelo Núcleo Recursal da Defensoria Pública de Santa Catarina, anulou um processo em que a decisão de recebimento da denúncia não foi fundamentada. Segundo a Defensoria Pública catarinense, “considerando que a decisão que recebe a denúncia tem natureza interlocutória, deve ser fundamentada, ainda que de forma sucinta. Nesse momento, o juiz deve verificar a presença dos pressupostos processuais, das condições da ação penal e a existência da justa causa.”
Esta decisão do Superior Tribunal de Justiça é paradigmática, pois, como se sabe, nossos tribunais sempre consideraram que a decisão que recebe a denúncia seria um mero despacho, de modo que prescindiria da necessária fundamentação. É bem verdade que já tinha havido “alguma evolução” a respeito da matéria, pois a jurisprudência passou a entender, há algum tempo, que tal ato judicial seria uma “decisão interlocutória simples”, admitindo-se, por conseguinte, a utilização das fórmulas genéricas: “cite-se o acusado” ou “recebo a denúncia, pois preenchidos os requisitos legais.”
Ainda assim, a ofensa ao artigo 93, IX, da Constituição Federal, que dispõe sobre o dever do Poder Judiciário de fundamentar suas decisões, era de uma evidência absurda. Não esqueçamos que a legitimidade dos membros Poder Judiciário (e do Ministério Público também) sustenta-se, fundamentalmente, na motivação de suas decisões (e dos pareceres em relação àqueles), já que não são escolhidos pelo voto popular. Afinal de contas, como dizia Calmon de Passos, “nosso saber só se legitima pela fundamentação racional (técnica, política e ética) de nossas conclusões). Porque impossível o controle experimental da correção do resultado, exige-se sua convincente fundamentação e compatibilidade sistêmica.”[1]
Ao ratificar a referida tese, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça afirmou que “a decisão de recebimento da denúncia possui natureza interlocutória, prescindindo de fundamentação complexa. (…) Caso em que o julgador, nem mesmo de forma concisa, ressaltou a presença dos requisitos viabilizadores da ação penal. Deixou de verificar a presença dos pressupostos processuais e das condições da ação, tampouco tratou da existência de justa causa para o exercício da ação penal, limitando-se a cuidar da presença dos pressupostos intrínsecos à peça processual, nestes termos: Recebo a denúncia, pois a peça acusatória preenche todos os requisitos do art. 41 do CPP. (…) A falta de fundamentação não se confunde com a fundamentação sucinta. Interpretação que se extrai do inciso IX do art. 93 da CF/88.”
Este julgado, efetivamente, trata-se de uma superação da então jurisprudência predominante em nossos tribunais (overrulling). A propósito, em uma palestra no 3º Congresso da Magistratura Laboral, ocorrido na sede do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, em São Paulo, questionado por esta revista Consultor Jurídico se os magistrados precisariam analisar todas as alegações das partes em suas sentenças e acórdãos, o ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki afirmou que, no confronto entre a necessidade de os Juízes fundamentarem suas decisões e a celeridade processual, a primeira norma (sic) deveria prevalecer “o dever de fundamentar está na Constituição Federal. Agora, a fundamentação não pode ser insuficiente, mas não precisa ser excessiva. Eu acho que ela tem que ser razoável e adequada, dependendo do caso”. Na mesma oportunidade, Teori Zavascki disse que os juízes modernos não poderiam basear suas decisões apenas na legislação infraconstitucional: “Os Magistrados precisam sempre interpretar os fatos e argumentos tendo em vista os direitos e garantias elencados na Constituição.”[2]
Ora, “a motivação dos atos jurisdicionais, conforme imposição do artigo 93, IX, da Constituição Federal (“Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade…”), funciona como garantia da atuação imparcial e secundum legis (sentido lato) do órgão julgador. Como bem leciona Antônio Magalhães Gomes Filho, a motivação exerce quer uma função política, quer uma garantia processual. Como função política, a motivação das decisões judiciais “transcende o âmbito próprio do processo” (A motivação das decisões penais. São Paulo: RT, 2001, p. 80), alcançando o próprio povo em nome do qual a decisão é tomada, o que a legitima como ato típico de um regime democrático. Como garantia processual, dirige-se à dinâmica interna ou à técnica do processo, assegurando às partes um mecanismo formal de controle dos atos judiciais decisórios, de modo a “atender a certas necessidades de racionalização e eficiência da atividade jurisdiciona.l”[3]
É certo, como adverte Jacinto Miranda Coutinho, que “no século XXI, como o domínio do pensamento mercadológico neoliberal, inadvertidamente tomado como epistemologia, era questão de tempo e consequência lógica o esgarçamento da ética. Afinal, partindo da eficiência como o princípio reitor e o lucro como finalidade, não se podia esperar que a competição fosse leal e ética; e se tivesse olhos para os outros.”[4] Especialmente para os denunciados…
Como lembrou Lenio Streck, juiz não pode ser como Azdak, da peça de Brecht, que decidia como queria, que não devia explicações a ninguém, e tampouco justificava suas decisões.[5] A exigência da fundamentação no recebimento das decisões das peças acusatórias (denúncia e queixa) não responde apenas a uma questão meramente procedimental ou formalista como querem alguns, especialmente os teóricos da instrumentalidade do processo, muito afeitos aos estudos do Direito Processual Civil.
[1] Revisitando o Direito, o Poder, a Justiça e o Processo – Reflexões de um Jurista que Trafega na Contramão, Salvador: Editora JusPodivm, 2012, p. 61.
[2] http://www.conjur.com.br/2015-mai-22/juiz-priorizar-fundamentacao-vez-celeridade-teori, acesso em 26 de abril de 2016.
[3] http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5112-O-DIREITO-POR-QUEM-O-FAZ-Superior-Tribunal-de-Justia. Acesso em 27 de março de 2015. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – Boletim nº 258 – Maio de 2014.
[4] O Lugar do Poder Juiz em Portas Abertas, de Leonardo Sciascia, texto publicado na obra coletiva “Os Modelos de Juiz”, São Paulo: Atlas, 2015, p. 224.
[5] O Modelo de Juiz e a Literatura, texto publicado na obra coletiva “Os Modelos de Juiz”, São Paulo: Atlas, 2015, p. 234.
Rômulo de Andrade Moreira é procurador de Justiça na Bahia, membro do Movimento do Ministério Público Democrático e professor de Direito Processual Penal na Universidade Salvador (Unifacs).
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